Nov 16
A história da pecuária no Midwest poderá, agora, salvar vidas
*Texto original de Joanna Radin/The Washington Post
Na segunda-feira, a empresa farmacêutica Pfizer anunciou dados iniciais que mostravam que uma vacina em desenvolvimento em parceria com a fabricante alemã BioNTech tinha uma eficácia acima de 90% na prevenção da Covid-19. O número impressionou pesquisadores, incluindo aqueles da minha própria instituição, a Escola de Medicina de Yale, que concordaram que, se os dados forem verídicos (ainda não foram revisados por pares), então esta vacina poderia reduzir dramaticamente o impacto do vírus.
Esta notícia rendeu manchetes, acompanhada pela criação, por Joe Biden e Kamala D. Harris, de uma força-tarefa contra a Covid-19, composta por especialistas biomédicos, sugerindo que, mesmo face a um aumento diário do número de infecções sem precedentes nos Estados Unidos, uma cura estaria à vista. Mas, armazenar e distribuir uma vacina – especialmente, a potencial vacina da Pfizer, que necessita ser congelada a -70°C antes do uso, uma temperatura próxima à do gelo seco – constitui um desafio significativo.
Os produtores rurais de gado oferecem uma solução. Nos anos 50, durante a Guerra Fria, eles desempenharam um papel essencial no desenvolvimento e crescimento da tecnologia para a circulação global de materiais biológicos, a temperaturas que alcançam os -196°C, comparáveis ao nitrogênio. Conhecidas como “cadeias frias”, essas redes de fornecimento possibilitaram o transporte de produtos médicos e agrícolas sensíveis à temperatura, dentro e fora dos EUA.
Por outras palavras, as práticas aprimoradas no interior norte-americano ajudaram a viabilizar as terapêuticas dependentes das baixas temperaturas – do transplante de órgãos ao armazenamento de sangue, da inseminação artificial ao desenvolvimento e distribuição de vacinas. A história de como os criadores desenvolveram e suportaram uma cadeia fria global demonstra que os problemas de saúde pública mundial requerem a atenção para a transferência de tecnologias entre setores da indústria, como a agropecuária e a biomedicina, bem como entre nações.
Uma das empresas mais influentes nos primórdios desta rede foi a American Breeders Service (ABS). Fundada em 1949, em Madison, Wisconsin, pelo empreendedor Rockefeller “Rock” Prentice, a empresa também patrocinou a Fundação Americana para o Estudo da Genética, uma corporação sem fins lucrativos dedicada à ciência da reprodução animal. A capacidade de congelar o sêmen de touro contribuiu para a intensificação da reprodução, possibilitando a obtenção de milhares de bezerros de cada animal, em vez de dúzias.
Menos de quatro anos após a sua fundação, a ABS já havia recrutado especialistas no campo emergente da criobiologia, conhecido como a “ciência da vida congelada”, para demonstrar o potencial da utilização do armazenamento a baixas temperaturas para manipular os processos reprodutivos. Em 1953, a empresa comemorou o sucesso dos seus experimentos em inseminação artificial com sêmen de touro com o nascimento de um bezerro a que chamaram “Frosty”, e um filme promocional declarando esta novidade como o “Progresso, progresso do jeito Americano!”.
O próximo passo seria o melhoramento da capacidade de se manter o sêmen a baixas temperaturas durante o transporte entre o laboratório e diversas propriedades rurais. A necessidade de se aprimorar o armazenamento frio e móvel – um elo crucial da cadeia fria – havia se tornado imperativa. Os tradicionais refrigeradores de gás querosene – que estão, rapidamente, se tornando obsoletos – eram portáteis, mas pesados. O nitrogênio líquido apresentou-se como uma nova possibilidade. Era inerte e não-inflamável, o que o tornava seguro para os materiais que mantinha congelados, bem como para os técnicos de campo que os transportavam.
Trabalhando com os engenheiros do laboratório de criotecnologia de Linde, perto de Buffalo, a ABS desenvolveu um botijão congelador portátil que combinava um novo material de isolamento e um vácuo para suportar o nitrogênio líquido. Os materiais biológicos contidos no botijão poderiam ser mantidos por até duas semanas, permitindo que fossem “transportados de fazenda em fazenda enquanto o inseminador local fazia as suas rondas.”
Embora a ABS tenha investido de forma intensa no desenvolvimento desta tecnologia, a empresa não procurou uma patente, possibilitando que os seus competidores ganhassem acesso a ela. Prentice reconheceu que tornar o seu equipamento disponível livremente poderia acelerar a inovação necessária para expandir a cadeia fria em nível global. O resultado foi uma transformação tanto na indústria da pecuária quanto na de nitrogênio líquido.
Nos anos 70, o sistema de distribuição baseado em nitrogênio líquido da ABS havia sido endossado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que estava profundamente dedicada ao desenvolvimento de sistemas de monitoramento epidemiológico de doenças infecciosas, baseados no sangue. Estes sistemas dependiam da obtenção e congelamento de amostras de sangue de pessoas de todo o mundo, e as formas de armazenamento a baixas temperaturas ainda eram muito dispendiosas – no caso do gelo seco – ou ineficazes – no caso do gelo convencional.
O nitrogênio líquido contornava estes problemas. O recipiente que a ABS construíra foi adaptado para o uso no transporte de outros materiais além do sêmen. Em um projeto piloto, conduzido pela OMS, o “refrigerador-transportador” foi preenchido com nitrogênio líquido na Europa e, então, enviado para Lagos, Nigéria, onde foi transportado para áreas rurais mais remotas, onde amostras de sangue eram coletadas, antes de serem levadas de volta à Europa. Todo o processo levou duas semanas e representou um fortalecimento dramático da cadeia fria para a saúde pública.
Uma empresa do setor de pecuária – em parceria com corporações interessadas na produção de gases em baixas temperaturas – havia se tornado a fonte de conhecimento sobre as considerações práticas de se trabalhar com materiais criopreservados, bem como a fornecedora de equipamentos para quem desejava preservar e transportar outros tipos de materiais biológicos em escala industrial.
A relação entre as demandas de vacinação e a agricultura não é nova. Na realidade, a palavra “vacinação” vem da equivalente em latim para “vaca”. As primeiras vacinas foram desenvolvidas em fazendas leiteiras, nos finais do século XVIII, quando se inocularam humanos com varíola bovina, como forma de se prevenir a propagação da varíola. Levaria até 1980 para a varíola ser erradicada. Parte do que possibilitou a distribuição em massa da vacina da varíola foi o fato de ela ser termoestável, o que significava que não precisava ser refrigerada.
Na era da Covid-19, a história da pecuária no Midwest oferece conhecimentos sobre os desafios e possibilidades envolvidos na distribuição da potencial vacina da Pfizer, quer ela acabe usando o nitrogênio líquido ou alguma outra forma de armazenamento. Na realidade, a forma como trabalhadores rurais e engenheiros se uniram a oficiais de saúde pública do outro lado do mundo em meados do século passado, durante uma época de conflitos geopolíticos, apresenta precisamente o tipo de lições inesperadas e necessárias para se sobreviver no presente.